Artista de dança e professora da célebre Escola de Dança Angel Vianna, a carioca Flavia Meireles, 31 anos, aceitou dois convites para realizar projetos na Europa: 'Sem nome, todos os usos', iniciado em Paris com apoio do Centre National de La Danse e da Ménagerrie de Verre/ StudioLabs; e 'As coisas entre as coisas', em parceria com Marcela Levi, num programa de residências da Casa Encendida, em Madrid. Também colabora e faz assistência no trabalho de Gustavo Ciríaco 'Nada. Vamos ver' com estréia prevista para dezembro. A moça, amiga do peito, deu entrevista a este blog por e-mail. Leia a seguir:
LARANJA É A COR DO VESTIDO DELA - Nos 12 anos que acompanho a sua vida de perto, já vi de tudo (risos). Já vi você super feliz, você vendendo carro pra viajar, você ensaiando vinte horas por dia na semana da estréia ou, pelo contrário, passeando na véspera de entregar um projeto importantérrimo. Como está a Flavia Meireles por dentro em agosto de 2008?
FLAVIA MEIRELES - Que bom que você já viu de tudo, sinal de que eu não sou uma pessoa só (risos). Difícil isso de dizer como estou no momento em que estou vivendo, mas... Vamos lá: Estou com a minha energia bastante voltada pros trabalhos que estou fazendo agora e isso me dá um bem-estar enorme. Gosto de estar/viver trabalhando e estou num momento particularmente intenso. Além do projeto solo, tenho um trabalho novo com a Marcela em duo, chamado ‘As coisas entre as coisas’, e estou fazendo assistência e colaboração no trabalho novo do Gustavo Ciríaco. Esse tempo por aqui na Europa tem sido bom pra ver isso e também pra me alimentar a alçar vôos.
LARANJA - Aliás, o seu trabalho atual, 'Sem nome, todos os usos’, tem a ver com coisas que fazem, desfazem e refazem; limites, bordas, dentro e fora. Qual foi o seu ponto de partida e a quantas anda essa experimentação toda?
FLAVIA - A experimentação continua, pois esse é um trabalho que iniciei aqui em Paris e que não está concluído. Ele está se fazendo e me refazendo. Tenho um material no qual me debruçar e agora é construir. Sinto que tenho um campo a trabalhar, um campo de pesquisa. Ainda não tenho previsão de mostrá-lo como um trabalho acabado, mas tenho mostrado o processo para algumas pessoas e isso enriquece bastante, pois me dá outros pontos de vista. Achei esse título numa marca de alimentos. O que me interessa no nome é a possibilidade de inventar usos, de se colocar em polissemia e tem a ver com o que gosto na linguagem que é dela atuar como motivação do imaginário, de ser aberta, esburacada, parcial e inventiva. Fazendo e se refazendo. A idéia de bordas, limites veio de maneira bem prática, a partir das experimentações na sala de ensaio que sugeriam isso. Além disso, um poema do Joan Brossa me caiu nas mãos, chamado 'Puente':
Este es el camino
Que sirve para pasar
Del poema anterior al siguiente.
Pra mim este poema tem muitas ressonâncias nas quais gostaria de tocar que dizem respeito a limite, instabilidade, caminho/caminhar, coisas que geram coisas, respostas que perguntam.
LARANJA - Nos textos que você mandou, encontrei referências a objetos em cena. Lembro de você pendurada na parede com o Paulo Caldas, mas nunca abraçada a uma cabeça de boi, por exemplo, como faz a Marcela Levi. É influência da Marcela?
FLAVIA - Li recentemente um pesquisador que diz que nosso corpo é formado por todos os lugares onde deixamos impressões digitais, fazemos cocô, beijamos, tivemos relações afetivas e lugares onde deixamos qualquer tipo de marca, mesmo que invisível. Estou dizendo isso porque você me pergunta sobre influências. E é comum pensarmos nelas como algo linear, claramente identificável, onde a gente vai achar o xis da questão, a origem. Mas eu acredito que elas são tão ramificadas como essa leitura do corpo desse pesquisador que falei. É preciso ter alimentos de muitos lugares e a Marcela está aí também. Em relação a objetos tem Marcela, Marina Abramovic, Cildo Meireles, Leonora de Barros e Joan Brossa, de maneiras bastante distintas entre eles. E também está o Paulo, além de coisas que ainda não me dei conta. Então, mais que buscar minhas influências (elas já vão estar lá, não preciso buscá-las), o importante é antropofagizar, tornar algo outro, transformar. Esse é o trabalho...
LARANJA - Ah, e achei outra questão que me encantou: desvio, torção, ambiguidade. Eu adoro desvios! Adoro encontrar um amigo na entrada da padaria e acabar seguindo com ele prum cinema. Gostaria que falasse um pouco sobre isso também, flor.
FLAVIA - Pois é... Isso também me encanta. E é uma coisa dificílima, pois o desvio não dá pra ser planejado, senão não é desvio (ha!). Estava pensando hoje que uma coisa que me interessa criar em cena são proposições claras e ambíguas, quero dizer, coisas que as pessoas percebam, mas não sejam passíveis de afirmar. Os nossos sentidos são assim, sentimos coisas, cheiramos, vemos, degustamos, eles são ao mesmo tempo claros e são uma suspeita de algo, não uma afirmação definitiva. Eles são passíveis de mudar, de se transformar. Por isso trabalho a partir da percepção. Por isso duplo sentido, jogo de palavras, associações indiretas têm muito valor pra mim. É por elas que tocamos a ambiguidade. Gosto de palavras com duplo sentido e de torções como a do Juan Brossa que pegou o símbolo da marca Volkswagen e colocou Volkswagner. Adoro esses lapsos que criam outros sentidos. Adoro também o conceito de indeterminação, do Cage (John, músico, pensador inspirador do movimento Fluxus e companheiro-colaborador de Cunningham) que conversa muito bem com a ambiguidade e que tem a ver com vários sentidos ao mesmo tempo.
LARANJA - O que você gostaria de destacar de Paris e colar no Rio de Janeiro?
FLAVIA - A infra-estrutura que se pode ter pra trabalhar com dança. Ter políticas públicas CONTINUADAS para a cultura. Ter investimentos pra cultura e não achar que cultura é artigo de luxo, supérfluo. Quem disse que cultura não enche barriga? Cultura gera saber, emprego, lazer, agrega pessoas e outras coisas mais. E não tô falando de um ponto de vista marqueteiro, pra tentar fazer a arte ser vendável (pois acredito que certos investimentos em arte não dá o lucro de imediato), mas sim interesseiro, que dialoga, critica e reflete a sociedade em que vivemos.
Ter o mínimo de infra-estrutura significa que os trabalhos podem surgir como um trabalho e não como uma gambiarra ou como aquela piada em que o cara pergunta “você trabalha com o que?” e, se você responde “dança”, ele vai te perguntar de novo “mas o que você faz?”. E a política pras artes tá mudando muito aqui na França, ficando mais neoliberal (flexível e inexistente ao mesmo tempo) mas, pelo menos, ainda tem infra-estrutura e tem possibilidades de novos modelos de produção (porque também tem dinheiro que vai pra esse fim).
Não gostaria, entretanto, de colar um modelo francês, mas sim, de novo, de antropofagizar, como nossos queridos doces bárbaros faziam, misturando ritmos, línguas e sons e achando uma mistura própria. Gostaria que em nossa cidade pudéssemos fazer nossa mistura, que tem gambiarra sim, mas que não se apoia nela.
LARANJA - E por falar nisso, caramba, quando a mocinha volta pra casa?
FLAVIA - Essa é fácil: 29 de agosto, sexta sem ser esta, a outra, às 17h30 no horário daí!
* Fotos de Micheline Torres *