11 de outubro de 2008

Há cem anos, nascia Cartola

Entrevistei Ronaldo de Oliveira, filho adotivo de Zica e Cartola, em 2002 para a pesquisa do musical 'Obrigado, Cartola!'. Dois anos depois, lancei um livro infanto-juvenil sobre o compositor, sem recorrer a este material porque a proposta do 'Cartola' (que faz parte da coleção 'Mestres da Música no Brasil', da Editora Moderna) era outra. Em 2006, trabalhava no site Jornal Musical e o editor Tárik de Souza me pediu para fazer um recorte diferente do sambista. Respondi que nem precisaria apurar nada. Era só transcrever a fita e organizar as falas do herdeiro. Esta matéria é para ser lida ao som dos álbuns maravilhosos deste autor mais do que genial:

Um lado desconhecido de Cartola
Por Monica Ramalho

"Eu não sabia dimensionar o que era conviver com o Cartola. Poderia ter aproveitado muito mais, entende?", arrepende-se Ronaldo de Oliveira, adotado aos 15 anos pelo sambista e por Dona Zica. Ele lamenta pelos tantos shows que não assistiu do pai de criação e também pelas vezes em que se limitou a deixá-lo na portaria dos estúdios, como numa das últimas gravações, na RCA Victor. "Notei que ele queria que eu acompanhasse. Por que não fiquei lá?", indaga a si mesmo. Além da relação árdua entre ambos, Ronaldo era taxista e, na época, estava mais empenhado em bater a féria do dia. No entanto, estas ausências lhe doem no peito até hoje. "Como alguém pode ser tão próximo e tão distante?".

Autor de clássicos como "As rosas não falam", "O mundo é um moinho", "Tive sim", "Quem me vê sorrindo" (com o fiel parceiro Carlos Cachaça) e "Disfarça e chora" (com Dalmo Castello), Cartola era também um homem duro, quase rude, no trato com as pessoas de casa, segundo as lembranças de Ronaldo. "Eu já existia quando o Cartola foi morar com a Zica. E ele não gostava de criança, não queria que ela me criasse, então tudo era muito difícil. Ele bebia além da conta e nós éramos pobres demais. Ele implicava comigo e eu implicava com ele, embora hoje eu dê valor a muitas de suas atitudes", emenda. Apesar do tratamento áspero, o sambista modelou o caráter de Ronaldo com muitas de suas lições.

De uma delas, em especial, o herdeiro não esquece. "Quando tinha uns 16 anos, fiquei desempregado. Cheguei para ele e falei: 'Seu Cartola, amanhã não precisa me chamar às 6h porque eu fui mandado embora'. Ele respondeu: 'Tá bem', mas quando chegou no outro dia, Cartola foi lá me acordar no mesmo horário de sempre. Eu reclamei e ele disse: 'Eu sei, meu filho, mas levanta e vai procurar um emprego. Ou então faz alguma coisa, varre o quintal, arruma o armário, sei lá, ou você vai se acostumar a levantar tarde e não vai mais procurar emprego'. Fui forçado a sair atrás de um trabalho", diz o filho, atualmente funcionário do Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro (Detran-RJ). Com o avançar dos anos e dos carinhos de Zica, porém, "o coração dele se abriu, pouco tempo depois ele era pessoa mais dócil".

Naturalmente, também havia momentos de pura má vontade entre os dois. Ronaldo lembra de um aniversário decorado com aquele bolo de chocolate maravilhoso da mãe, a famosa cozinheira Dona Zica, família reunida, um monte de primos da idade dele para brincar até altas horas. "Tomei um banho rapidíssimo e ele me esperou sair do banheiro para dizer: 'Ô, Ronaldo, não é possível que você tenha tomado banho em um minuto. Volta para o chuveiro' e ficou na porta me esperando, com o relógio na mão". Como se vê, Ronaldo conheceu um lado pouco visível do compositor que, apesar de silencioso, estava sempre cercado de amigos.

"Ele chegava no botequim e não pedia nada a ninguém, por nada. Podia estar morrendo de vontade de tomar uma cerveja, mas não pedia se não pudesse pagar. Isso eu aprendi com ele e ainda sou um pouco assim. Então quando ele estava com pouco dinheiro, comprava uma cerveja que se chamava 'mini-saia'. Era pequena e, por isso, ele não precisava dividir com os outros". Em tempos mais abastados, Cartola gostava mesmo era de beber Antarctica e Pau Pereira, uma cerveja amarga. Também molhava o bico com conhaque Dreher e fumava cigarro Astória. "Cartola via televisão e lia jornal todo santo dia. Podia não ter dinheiro para mais nada, mas não abria mão do jornal. E era fanático pelo Fluminense", afirma.

Em matéria publicada em março de 1978, disse Cartola: "É bom ter a casa cheia de amigos, mas não todos os dias. Procurei um cantinho para repousar e ter um pouco de sossego. E quero uma casa com todo o conforto, com tudo novo, tudo bonito". A última moradia do sambista – numa casa confortável da Rua Edgard Werneck, em Jacarepaguá – é, há muitos anos, a residência de Ronaldo e família. “Cartola sentava ali numa cadeirinha gostosa com tudo apagado e ficava horas olhando pro nada. Quanto mais escuro, melhor. Ele era uma pessoa muito interessante e ficava parado na mesma posição por muito tempo. Ele adorava a solidão e veio morar aqui por causa disso", recorda.


Cartola: "Só venci no final"

O verso é do amigo Nelson Cavaquinho, mas Cartola foi um dos criadores do samba carioca que mais receberam flores em vida. As homenagens perduram até os dias atuais. Em 2007, o cinema exibiu o documentário 'Cartola', dirigido por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda. A inventividade do compositor também já inspirou um musical em 2003 - 'Obrigado, Cartola!', sob a batuta de Vicente Maiolino -, meia dúzia de livros (com destaque para a biografia 'Cartola, os tempos idos', de Marilia Barboza Trindade e Arthur Oliveira Filho) e dezenas de discos e shows, idealizados por amigos e admiradores da obra do mestre mangueirense, e há também o Centro Cultural Cartola, idealizado por Zica e comandado pelos netos Nilcemar e Pedro Paulo Nogueira, filhos de Regina, também criada pelos Oliveira.

Fundador da Estação Primeira de Mangueira e responsável pela escolha do verde-e-rosa da escola, Cartola foi um dos artistas brasileiros de mais idade a lançar disco solo. Em 1974, aos 65 anos, gravou seus sambas num álbum individual, editado pela Marcus Pereira. Em 1976, gravou outro disco, pela mesma gravadora, ambos chamados apenas 'Cartola'. Em 1977, lançou 'Verde de que te quero rosa' e, dois anos depois, 'Cartola 70'. Alguns meses antes de morrer, foi convidado a gravar um depoimento na Rádio Eldorado, onde narrou episódios marcantes de sua história e cantou suas belas músicas. Esta entrevista chegou ao mercado no ano seguinte com o título 'Cartola – Documento inédito'. Todos estes long plays foram relançados em CD.

"Minha vida é igual a filme de mocinho. Só venci no final", resumiu o sambista, que foi dono, com a mulher Zica e empresários, do célebre Zicartola. Mais de quarenta anos da inauguração do bar – que funcionava na Rua da Carioca, 53, Centro do Rio - e ele ainda é considerado um divisor de águas na história da MPB. "Foram os melhores anos da minha vida. A casa era freqüentada pela fina flor de Copacabana e pelo mais humilde sambista do morro, pois o Zicartola conseguiu integrar os compositores da bossa nova com aqueles que fizeram os inesquecíveis sambas cantados até hoje", comentou Zica, em fevereiro de 1988, no Jornal do Brasil.

Em entrevista ao jornalista Tárik de Souza, em novembro de 1974, Cartola revelou como fazia para compor: "Eu não tinha interesse nenhum por leitura. Mas um dia, quando eu estava mais ou menos com 25 anos, um primo me deu um livro de poesias de Humberto de Campos e eu gostei muito e passei também a ler Castro Alves e Guerra Junqueiro. Tem letras que vêm quase prontas. Outras vêm só com um pedacinho. Ponho num rascunho e guardo num canto até vir a inspiração. Prefiro fazer pouco mas fazer bem". Essa era a filosofia do sambista que, desde criança, quando saía nos ranchos carnavalescos de Laranjeiras, apreciava boa música e elegância, hábitos aprendidos com os pais Sebastião, cavaquinista, e Aída, sempre muito caprichosa com as fantasias do primogênito de oito irmãos.

"Um dia, o Mário Reis me comprou um samba por 300 cruzeiros. Era um dinheirão. Dava pra comprar um terno, mas terno bom, de linho branco, sapato, camisa, tudo. Gastei em roupa, em bebida e farra", confessou. Francisco Alves foi o primeiro cantor a gravar uma música de sua autoria ("Que infeliz sorte!", em 1929) e, coincidentemente, seu primeiro sucesso popular ("Divina Dama", em 1933). Nestas oito décadas, a obra de Cartola – que ganhou este apelido quando defendia um trocado como pedreiro e, muito vaidoso, usava um chapéu-coco para proteger os cabelos do cimento – varreu o mundo e ingressou de uma vez por todas no primeiro time da Música Popular Brasileira.

* Fotos do amigo Antônio Carlos Miguel, publicadas no meu livrinho que gosto tanto e no especial sobre o centenário do poeta mangueirense, nas páginas do Segundo Caderno deste sábado *

3 comentários:

Unknown disse...

Que história ...

Monica Ramalho disse...

a gente não consegue imaginar esse cartola tão de carnes, ossos e sangue, né? era um cidadão rude como nossos avós, claudinha... beijo procê!

Anônimo disse...

Parabéns pela matéria.. Cartola foi um gênio nos deixou um eterno vazio,nós usamos suas músicas para crescer como ser humano, amadurecer, diante de um homen pobre e feio por fora,percebemos tanta beleza e talento no interior do maior poeta da música brasileira.É fácil perceber com clareza quais são as grandes riquezas da vida.. Cartola é eterno! Salve o morro de Mangueira.
meu email rafaeldinizpy@hotmail.com
Valeu!!!